segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

TERRAMÉRICA - América Latina inundada

Por Mario Osava*

A competição entre empresas brasileiras e chinesas, capacitadas para grandes obras, cria condições propícias para o aproveitamento energético dos caudalosos rios latino-americanos.

Rio de Janeiro, Brasil, 31 de janeiro de 2011 (Terramérica).- A crescente presença de capitais brasileiros e chineses no setor energético da América Latina facilita a construção de numerosos complexos hidrelétricos, além de incentivar posturas nacionalistas que se somam aos questionamentos ambientais sobre esses grandes projetos. As três maiores obras hidrelétricas do Equador estão a cargo de empresas chinesas, o que rompe a hegemonia que tinham nessa área construtoras brasileiras como Odebrecht e Andrade Gutierrez.

O financiamento pelo Exim Bank (banco de comércio exterior) da China, que cobre quase todos os custos, tornou viáveis estas centrais num momento em que o Equador havia limitado o acesso ao crédito devido à revisão da dívida pública feita pelo governo, a partir de 2007, e que o levou a não pagar US$ 4 bilhões por entender que não eram devidos. O Brasil também financia obras por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Entretanto, esses investimentos foram afetados a partir de 2008, quando o governo equatoriano do presidente Rafael Correa expulsou a Odebrecht, acusando-a de falhas na construção da hidrelétrica San Francisco e reclamando reparação no valor de US$ 210 milhões. A competição entre Brasil e China, ambos com capitais excedentes e que possuem construtoras especializadas em grandes projetos, cria condições mais favoráveis para o aproveitamento energético dos abundantes rios latino-americanos.

E esta luta já tem um ganhador no Peru, no que se refere aos cinco complexos hidrelétricos que serão construídos na Amazônia. Estão “planejados em função dos interesses brasileiros”, que serão os únicos beneficiados, disse ao Terramérica o diretor da organização não governamental ProNatureza, Alfredo Novoa. O ativista questionou esses projetos por entender que o Peru conta com geração suficiente para seu consumo elétrico atual e pode atender sua demanda futura pelo potencial da Cordilheira dos Andes e dos ventos costeiros, que não representam danos ambientais e sociais como acontece com as represas na selva amazônica.

Esta reação nacionalista à multiplicação das hidrelétricas também condena o financiamento pelo BNDES, que tem como condição a importação de equipamentos e insumos brasileiros para execução das obras. É um mecanismo usado pelo Brasil para aumentar as exportações de grande valor agregado, além da cobrança de juros e dos lucros de suas empresas, que serão sócias ou construtoras das centrais.

O acordo energético entre os dois países, assinado em junho de 2010 para a construção de cinco hidrelétricas na selva peruana, foi resultado de uma “negociação assimétrica”, segundo Alfredo, já que estabelece a venda para o Brasil da energia excedente pelo prazo de 30 anos. Como o Peru “não precisa” de novas fontes na Amazônia, “e o Brasil sim”, fica evidente a quem servem os projetos, ressaltou.

“Com o Brasil não se negocia, só se aceita”, disse o presidente do Peru, Alan García, em reunião privada com empresários, diplomatas e líderes sociais no Chile, afirmou no dia 20 o analista político chileno Patricio Navia em seu Twitter. As represas e linhas de transmissão a serem construídas implicam desmatamento de 1,5 milhão de hectares amazônicos, estimou o engenheiro peruano José Serra em um estudo para a ProNatureza.

A China concentrou seus investimentos no setor de mineração do Peru, enquanto o Brasil se voltou aos hidrocarbonos, obras de infraestrutura de transporte e hidrelétricas nas áreas próximas à fronteira comum. Esses capitais dos dois gigantes emergentes tiveram um papel importante no crescimento econômico peruano e reduziram a dependência desse país em relação aos Estados Unidos, que ainda não superou a crise surgida em 2008, disse ao Terramérica a analista política Cynthia Sanborn.

As empresas brasileiras atuam em diversos setores da economia peruana, e “não se vê muita resistência a esses investimentos por parte da sociedade civil, à exceção do caso das hidrelétricas”, disse Cynthia, especialista norte-americana que dirige o Centro de Pesquisa da Universidade do Pacífico, no Peru. Tampouco tem boa aceitação o capital chinês, depois que a Shougang Hierro, que explora minas no país desde 1992, provocou grande contaminação por vazamento de óleos e lubrificantes e foi acusada de não respeitar leis trabalhistas, enquanto outras duas empresas chinesas geraram conflitos, com mortos e feridos.

A Nicarágua é outro país onde as hidrelétricas estão nas mãos de firmas brasileiras, favorecidas pelo fato de este país não ter relações com a China, porque as mantém com Taiwan. O projeto hidrelétrico Brito, concedido em 2007 à construtora Andrade Gutierrez, também gerou polêmicas e críticas de ambientalistas, porque represará as águas do rio San Juan para inverter seu curso natural para o Mar do Caribe e fazê-lo desaguar no Pacífico. Terá capacidade de geração de 250 megawatts, ao custo inicial de US$ 600 milhões. Outra central, a Tumarín, de 220 megawatts, foi ganha pela também brasileira Queiroz Galvão.

Com relação ao Brasil, os investimentos chineses cresceram abruptamente nos últimos dois anos, em variados setores. Em energia, curiosamente, foram destinados à compra de empresas de transmissão e distribuição de eletricidade, além de outras participações em poços de petróleo. São dois tipos de investimentos, um para adquirir reservas de recursos naturais não renováveis e atender a demanda da própria China, e outro para gerar empregos para chineses no exterior e exportar equipamentos, disse ao Terramérica Adriano Pires, consultor em energia e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura.

A China é um dos poucos países que desenvolveram tecnologia para executar as grandes obras de infraestrutura, mas dificilmente penetrará nesse setor no Brasil, como fez na África e no Equador, porque as construtoras brasileiras são muito competitivas, disse Adriano. Porém, participam do atual auge dos complexos hidrelétricos e termelétricos, vendendo turbinas e equipamentos, graças aos seus preços baixos.

Os investimentos chineses parecem “tímidos”, porque muitos não aparecem nas estatísticas, como os que compraram o controle acionário de empresas importantes, disse ao Terramérica o presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais, Luis Afonso Lima. É o caso da montadora de veículos sueca Volvo, acrescentou. Contudo, sua orientação não parece priorizar a energia elétrica no Brasil, afirmou. Com quase US$ 3 trilhões em reservas internacionais, a China tenta transferir seus investimentos em títulos do Tesouro norte-americano para outros ativos, concordou Adriano.

* O autor é correspondente da IPS. Com colaborações de Gonzalo Ortiz (Quito), José Adán Silva (Manágua) e Milagros Salazar (Lima).

O duplo discurso de Washington

Por Jim Lobe e Ali Gharib, da IPS

Washington, Estados Unidos, 31/1/2011 - O governo dos Estados Unidos tenta definir sua posição frente à revolta popular que coloca em xeque o regime do Egito, o aliado árabe mais importante de Washington, enquanto dezenas de milhares de manifestantes continuam protestando nas ruas do Cairo e em outras grandes cidades do país. O presidente norte-americano, Barack Obama, convocou uma incomum reunião com altos funcionários da área de segurança para o dia 29.

Após a conversa telefônica que mantivera anteriormente com o presidente do Egito, Hosni Mubarak, Obama disse ter dito ao seu colega que “são necessárias medidas concretas para proteger os direitos do povo egípcio, um diálogo significativo entre o governo e seus cidadãos e uma mudança política que dê maiores liberdades, mais oportunidades e justiça às pessoas”. “Claramente, Washington está em uma posição de gestão de crise, não de resolução”, disse Robert Danin, ex-assessor para Oriente Médio no governo de George W. Bush, em uma videoconferência realizada pelo Conselho de Relações Exteriores.

Não se sabe quais medidas concretas a Casa Branca adotará, mas a incapacidade da polícia egípcia para controlar as maciças manifestações no Cairo e em outras cidades convenceu numerosos analistas norte-americanos de que o regime de Mubarak, que já tem três décadas, está com os dias contados, apesar de no dia 28 ter nomeado novo gabinete.

Consultada sobre a situação no Egito, a secretária de Estado, Hillary Clinton, disse, no dia 28, que “o que acontece no Egito é questão dos egípcios”, sendo que no dia 25 havia dito que a situação era “estável”. O “assunto sobre o qual temos que nos concentrar é como podemos ajudar os egípcios a terem um futuro de acordo com suas expectativas”, afirmou Hillary. A secretária também pediu urgência ao Cairo para “que faça todo o possível para conter as forças de segurança e manter um diálogo com o povo”.

Pouco depois, o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, sugeriu, pela primeira vez, a possibilidade de Washington poder usar sua nada desprezível ajuda ao Egito para fazer Mubarak avançar nessa direção. Desde os acordos de Camp David de 1979 com Israel, Washington entrega ao Egito US$ 1,3 bilhões por ano em apoio militar e segurança e outros US$ 800 milhões em ajuda econômica, embora esta última tenha diminuído nos últimos tempos, o que fez desse país o maior receptor de assistência dos Estados Unidos, depois de Israel.

A ajuda militar é especialmente importante porque o exército desse país se converteu em um fator fundamental na definição do destino do regime. De fato, altos comandantes egípcios estiveram em Washington para sua reunião anual com seus colegas norte-americanos, tendo regressado no dia 28 ao seu país.

“Revisaremos nossa ajuda em função do que ocorrer nos próximos dias”, disse Gibbs, que, como Hillary, pediu para Mubarak restabelecer a conexão de Internet, cortada na noite do dia 27 para impedir a organizações maciças como a que acabou ocorrendo 12 horas depois. O vice-presidente dos Estados Unidos, Joseph Biden, também ressaltou a importância de haver reformas políticas econômicas, mas recordou que Mubarak “foi de muita ajuda em vários assuntos ligados ao Oriente Médio. Não o chamaria de um ditador”, afirmou Biden.

Seus comentários, como os de Hillary e Gibbs, mostram o que numerosos analistas em Washington qualificam de “duplo discurso” da Casa Branca para lidar com as crises atuais. “Por um lado, tenta afirmar seu contínuo apoio ao regime de Mubarak, amigo dos Estados Unidos. Por outro, pretende articular princípios de acordo com as reclamações dos manifestantes”, disse Danin. “O problema é que chegou tarde e é muito difícil conciliar as duas posições”, acrescentou.

Numerosos analistas deste país consideram que Washington, que parece avançar lentamente nessa direção, precisa se expressar com maior clareza a favor das reclamações democráticas dos manifestantes, um esforço que parece vislumbrar-se com a declaração de Obama após sua conversa telefônica com Mubarak.

“Espero que, quando falar com Mubarak, Obama não se concentre na necessidade de estabilidade, mas em dar resposta às reclamações por liberdade”, disse, antes do discurso do presidente, Steven Cook, especialista em Oriente Médio do Conselho de Relações Exteriores, que regressou no dia 28 ao Cairo. “Mubarak deve compreender que não vamos permitir que faça qualquer coisa para recuperar o controle”, acrescentou. “Obama deve reconhecer que Washington não ouviu o suficiente os povos da região”, disse, por sua vez, Helena Cobban, especialista em Oriente Médio. Envolverde/IPS



(IPS/Envolverde)